Cada século tem uma característica dominante que lhe é própria, especializando-se numa criação particular que parece a razão de ser desse tempo; e é justamente o produto dessa criação que sobrevive, transmitindo aos séculos porvindouros. O nosso é o século dos nervos. Parece até que nossos pais não os possuíam; pelo menos, assim nos aparecem, em sua vida sem agitações, em sua calma, que nós já não conhecemos nem quando repousamos, tanto que frequentemente nos acreditamos enfermos; mas, então, todos estamos doentes. Os nervos, porém, não são apenas irritabilidade, inquietude, insaciabilidade; não têm, felizmente, só o aspecto visto pela ciência – o pseudo-patológico da neurose –, mas possuem uma face ainda não percebida, o aspecto evolutivo de uma nova criação biológica: o psiquismo.

Em nossa época atual, o tipo humano está deslocando sua funcionalidade do campo muscular para o campo nervoso e psíquico. Algures, desenvolvi esse tema, mas devo agora a ele voltar, porque, se representa o terreno sobre o qual se apoia nossa vida, em que se agita nossa luta e nossa conquista se realiza, é também o cenário em que se enquadra e se justifica o problema presente neste volume de ultrafania1. Não se trata, portanto, de um fenômeno casual: é momento substancial e logicamente situado no curso da evolução biológica e das ascensões espirituais humanas. No caso específico da mediunidade, não poderia deixar de influir a repercussão daquele caso geral, que condiz com o momento de acelerado transformismo que em nosso planeta atravessa hoje a evolução biológica, em sua mais alta fase humana, evolução que, em torno de sua mais excelsa criação, febrilmente se afana.

E a mediunidade se modificou com o transformar-se de todas as coisas; devia, primeiramente, transformar-se na mais evidente manifestação da alma humana. A mediunidade apresentou-se, no cenário do mundo atual, através da observação científica, sob a forma de mediunidade física, de efeitos materiais, com características musculares, tais como eram as manifestações predominantes do espírito humano, nas grandes massas, até o nosso século; hoje, no entanto, tornou-se ultrafania, isto é, uma mediunidade superior, evolutivamente mais desenvolvida – mediunidade de efeitos psíquicos. Uma vez que tudo evolve, e a evolução nunca se processou tão vertiginosamente como hoje, também a mediunidade deve conhecer sua ascensão. De quanto isso é verdadeiro, também por minha íntima e profunda experiência, direi mais adiante.

Desse modo, até hoje, tem a mediunidade evolvido, em muitos casos, desde a forma psíquica de manifestações materiais até a forma psíquica de manifestações intelectuais. E tanto, que a primeira forma se apresenta aos nossos olhos, agora mais experimentados e mais habituados a examinar o mistério, como qualquer coisa cada vez menos assombrosa e menos probatória. Cada vez mais se dissipa a mania do maravilhoso; nossa crescente sensibilidade analítica vai tendo sempre menos necessidade do choque que o prodigioso provoca; sempre e menos nos abala o espetáculo das levitações, dos transportes, das manifestações acústicas, óticas e táteis. Ao passo que tudo isso é deixado à experimentação científica – que, de resto, já há decênios se move sempre no mesmo círculo, de que parece não saber sair nem para uma conclusão, nem para progredir, – a mente humana pede um alimento mais substancial, um contato mais elevado, uma nutrição conceptual que a sustente diretamente. E eis-nos em plena ultrafania.

 Cada um sente, mais ou menos distintamente, em meio à transtornante explosão de uma nova sensibilidade nervosa e espiritual, entre ímpetos de nervosismo e irritabilidade (erroneamente considerados patológicos e que, ao invés, são um novo modo de sentir que já não suporta as velhas formas da vida, mas impõe novas), cada um sente revelar-se em si o fenômeno, que é substancial, em meio àquelas escórias e desvios: é uma nova capacidade de sentir o pensamento, de perceber a distância. E tudo isso já não se perde no fantástico, mas aparece como intuição, pressentimento de um real estado futuro, estado do ser humano hipersensível, que transmite e regista correntes de pensamento, noúres2, e o faz relacionando-se com seres que parecem irreais porque imateriais, mas que estão vivos e presentes, porque sabem dar de si manifestações aos nossos mais sensibilizados e aperfeiçoados meios perceptivos.

O tema que vou desenvolver, se pode parecer avançado para os nossos dias, amanhã será de domínio científico; e é também de interesse atual para a grande maioria que apenas começa a agitar-se. E começa, porque é inegável a necessidade de um retorno ao espírito. Não é somente retorno de reação ao materialismo, não é apenas um reflexo de cansaço em face de uma orientação que se mostrou impotente, com seus meios e métodos, para chegar a uma conclusão. É uma retomada, em cheio, como jamais arrostada na História, com as armas de uma ciência aguerrida de experiências; é uma revolução que avança, trovejando, das profundezas do espírito, que quer saber e deliberar a fim de guiar-se conscientemente na vida. E esta palavra – espírito – transporta-se das igrejas e das religiões e aparece francamente no grande ambiente social e vibra na política, nas instituições, nas leis, nas crenças e nas obras do mundo.

Paralelamente, o fenômeno ultrafânico se aprimora e se vigoriza. Este período pós-bélico (embora seja difícil o juízo a quem está imerso nessa própria época) é indubitavelmente grande na História por uma febre de criações universais, que, apesar de resistências e lutas, se preparam para lançar as bases de uma nova civilização. Nesta nossa época, surge a ultrafania, com manifestações de força espiritual, agindo em colaboração com as forças superiores que guiam o mundo em sua atual e laboriosa ascensão. Parece que nesta agitação geral, que é fragmentação e restauração de pensamento, também as “correntes de pensamento” que circundam o ambiente humano intervêm, ativas e operosas, para guiar e iluminar. É natural que uma deslocação de forças psíquicas excite outras deslocações, porquanto nada é isolado no universo; e os fenômenos das forças psíquicas obedecem às mesmas leis de coordenação e de equilíbrio a que obedecem também as leis da matéria e das forças inferiores. E a vida, que jamais pode extinguir-se (isso seria um absurdo lógico e científico), é natural que se comova e desperte, até nas suas formas imateriais, se percutida pelo eco das vicissitudes humanas, que naquela imaterialidade se continuam e se completam.

E então, pela convergência de duas forças, isto é, a sensibilização da consciência humana, a superar os últimos diafragmas, e a atração dos altos centros de pensamento que se voltam para a Terra pela lei de equilíbrio, de bondade e de missão; então, a ultrafania assume o poder de grande inspiração, ativa e consciente. O fenômeno mediúnico eleva-se ainda mais. Deixamos atrás a mediunidade física. Superamos a mediunidade de efeitos intelectuais que se manifestam na inconsciência do médium, cujo eu é adormecido e momentaneamente eliminado. Falarei, neste volume, de um tipo de mediunidade intelectual ainda mais elevado, uma mediunidade inspirativa consciente, operando em plena luz interior, em que o sujeito receptor conhece a fonte, analisa os pensamentos, com ela sintoniza e a ela se assemelha, buscando-a pelos caminhos da afinidade; mediunidade ativa, operante, fundida no temperamento de um indivíduo, emanação normal na sua personalidade; mediunidade a tal ponto límpida no seu funcionamento, na consciência deixada em seu estado normal, que é possível, através de um exame introspectivo, realizado racionalmente com os critérios científicos da análise e da experimentação, reconstituir a técnica do fenômeno inspirativo, tendo por base fatos e estados vividos, deduzidos diretamente da observação.

Com esta definição realista do problema, a hipótese e a afirmação gratuita de que o pensamento registado pela mediunidade inspirativa, provém do subconsciente humano, são automaticamente excluídas, porquanto todos os fatos que tenho vivido em mim e objetivamente notado como observador imparcial, falam em sentido completamente diverso. Aquela hipótese excluída não merece, portanto, uma refutação explícita. E todo o desenvolvimento da técnica do fenômeno será seguido precisamente com referência a uma fonte por completo distinta da consciência do médium receptor.

O mundo do além aparecerá tão vivo, através da descrição de minhas sensações, que adquirirá o caráter duma realidade científica. Como vê o leitor, não estou aqui a expor baseando-me em indagações teóricas, nem me refiro a opiniões ou interpretações alheias nem me interessa alardear erudição. Toco o fenômeno com as mãos e relato quanto me disseram minhas sensações e minha experiência direta.

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Saio cheio de impressões ainda recentes, duma experiência novíssima. A 23 de agosto de 1935, às 11 horas da noite, acabava de escrever A Grande Síntese, em Colle Umberto, Peruggia, na torre de uma casa de campo, à mesma pequena mesa onde quatro anos antes, no Natal de 1931, noite alta, havia iniciado a primeira das mensagens de Sua Voz.

Quatro anos de superprodução intelectual, de intenso drama interior, de hipertensão psíquica, de sublimação espiritual, emergindo da cinzenta monotonia do magistério, esforço que me é imposto no cumprimento do dever de todos, de ganhar a vida com o próprio trabalho.

Quem me sustentara no árduo trabalho de uma tão intensa produção? Uma fé profunda se assenhoreou de mim, arrastando-me com uma febre de altíssima paixão. Este é o segredo da afirmação de um escrito: havê- lo, antes de tudo, vivido profunda e intensamente, de modo a fazer dele o espelho de uma fase da vida; haver nele, todo, lutado e sofrido, conceito, por conceito, e oferecê-lo vibrante como a alma, palpitante como foi o fenômeno interior que o gerou. O leitor sente, embora inadvertidamente, esta sinceridade e alegra-se com o poder satisfazer o instinto humano de mergulhar-se nas profundezas do mistério de outra alma. Naqueles escritos não ofereci o produto de estudos exteriores à minha personalidade e dela separáveis; pelo contrário, dei-me totalmente, qual hoje sou, na fase de maturação que atingi no meu caminho evolutivo. E expondo, aqui, sem disfarce, as profundas vicissitudes de uma alma, substancialmente relato a história do espírito humano, na qual o leitor se achará mais ou menos a si mesmo. Narro o eterno drama das ascensões humanas. Anatomizo, refletido no meu caso particular, mas concreto e vivido, o fenômeno cósmico, que é de todos.

Se aqueles escritos têm uma história própria, exterior e visível, que facilmente pode ser encontrada na imprensa e que não é oportuno repetir, existe toda uma história interior, que eu vivi no silêncio e na solidão, a história da maturação do meu espírito, para que pudesse atingir este momento – talvez esperado e preparado há milênios – momento de sua maior realização.

É útil conhecer esta história interior, tanto quanto a exterior, para que se possa enquadrar o fenômeno da recepção inspirativa e das noúres de que nos ocuparemos agora: fenômeno completo, em que intervêm elementos morais, espirituais e biológicos, cuja solução implica a dos mais vastos problemas do universo, fenômeno que não se pode, por isso, isolar de todos os fatores e elementos concomitantes. É um fenômeno concreto, inseparável do fato que eu o vivi e não se pode reduzi-lo, sem mutilação, à estrutura linear de uma simples hipótese vibratória de transmissão e recepção de ondas.

Este é o meu caso, dele não posso prescindir, portanto. Se é particular (e do particular ascenderemos, através dos fatos, ao geral), é também real, isto é, pertence em grande parte à categoria dos fenômenos controláveis pelo método objetivo da observação. Creio que seja meu primeiro dever ater-me a essa realidade objetiva.

Objetividade, fria análise científica, mas profundidade de introspecção simultaneamente, para penetrar e solucionar este mistério do supranormal que tenho vivido. Estas confissões, que devo fazer porque vão permitir a compreensão daqueles escritos, aclaram o fenômeno e podem, portanto, ser úteis a essa nascente ciência da alma que, eu o sinto, é a ciência do futuro. Estudo imposto pelo dever, embora possa parecer auto-reclamo; estudo difícil, porquanto o supranormal foi mal compreendido pela ciência, que o quer relegar ao patológico, confundindo-o com o subnormal; estudo não bem interpretado pelo público que, no vórtice totalmente exterior da vida moderna, ignora completa ou quase completamente esta segunda vida do espírito, não sabe ver bem e desfigura o problema, porque o considera de um plano de consciência diverso e inferior. Difícil estudo este, porque nenhum auxílio me pode chegar do mundo dos homens, porque o saber terrestre não sabe dar-me um guia em meu caminho, algo dizer-me que me dê a solução destes problemas; mas, difícil principalmente em si mesmo, porque o supranormal, até nos momentos excepcionais em que se revela mais poderosamente, parece querer esconder-se nas vias de ordem natural, como se o esforço de exceção que supera o comum fosse continuamente detido, refreado e encoberto pela lei universal, que quer parecer invariável.

Nada estou pedindo aos meus semelhantes. Sei que nada têm para dar-me. Estou só e sozinho permaneci diante dos maiores mistérios, de que nem ao menos suspeitam. Tenho vivido de ousadias, de prostrações, de lutas e de vitórias que, no espírito de meus semelhantes, que meu olhar tem examinado por toda parte, quase nunca encontro. Sou feito de dor e não aceito, não quero para mim triunfos humanos; isso não por mérito meu, mas porque, espontaneamente, o centro de minhas paixões se encontra distante das coisas terrenas. Tenho amado, estremecido e sofrido, sozinho, diante do infinito, numa sensação titânica de Deus. Tenho agarrado pela garganta as inferiores leis biológicas da animalidade, para estrangulá-las e superá-las. Tenho vivido minhas afirmações como realização biológica, antes de formulá-las em palavras.

Sob as aparências de uma vida simples e uniforme, tenho vivido as grandes tempestades do espírito humano e já me habituei a olhar, sem tremer, nas profundezas vertiginosas do infinito. É por isso que posso empreender o estudo do fenômeno inspirativo, sem profundos sinais de cultura preexistente, sem preconceitos ou referências, com a alma solitária e nua diante do fenômeno, livre e independente de qualquer ideia humana, tranquilo e virgem de espírito, como na aurora da vida.

Bem sei que o mistério científico é protegido pelas forças da Lei e, algures, já o disse por quê. Estou, porém, acostumado a violentar essas proteções, direi melhor: acho-me em particularíssimas condições, em minha fase evolutiva, de extrema sensibilização perceptiva, que me possibilitam sentir além do limite dado e não superável pelo método racional e objetivo da ciência moderna. Conheço esse método, conheço a sufocante psicologia dos chamados intelectuais de profissão, da cultura que repete eternamente o passado, que comenta e analisa, que nada cria, que pesa e mata o espírito.

Estou nos antípodas. Detesto a bagagem embaraçante dos conhecimentos elementares e considero um crime desperdiçar energias psíquicas para armazenar e conservar o que deve ser confiado às bibliotecas. Sou livre e devo sê-lo para poder voar, leve, rápido, destilando intelectualidade, não como esmagadora mole de sabedoria, mas, num sentido de orientação, que possa cingir todos os conhecimentos humanos, como a vista domina as coisas.

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Do Natal de 1931(“Mensagens do Natal”) até agosto de 1935(término de a Grande Síntese) decorreram quase quatro anos em que ao meu espírito afloraram, progressiva e metodicamente, profundos estados psíquicos, após lenta incubação, culminando na maturação de minha personalidade eterna. Exporei, porque é necessário à compreensão do fenômeno inspirativo por mim vivido, os estados psíquicos que precederam este período e que constituíram sua preparação; exporei, em seguida, a maturação em mim, em forma clara e ativa, de uma nova psicologia e a produção que a continuou, explicando como, sem qualquer preparação volitiva e consciente, abandonando-me a esses estados de espírito até então desconhecidos meus, pude desenvolver um trabalho intelectual correspondente a um plano lógico de desenvolvimento, ao qual não se pode negar uma ideia diretiva, uma proporção de partes e meios em face de um alvo conhecido e desejado, mas desde o princípio estranho à minha consciência habitual.

É científico colocar o fenômeno no seu ambiente. É necessário fazer preceder esta parte descrita à outra, em que me aproximarei da substância do fenômeno, para explicar-lhe a essência e o funcionamento até que desponte a compreensão do típico fenômeno inspirativo.

Naquela noite de agosto se encerrava uma fase de minha vida: a vida é verdadeiramente um caminho e, nas vicissitudes de cada dia, a alma elabora o seu destino. A vida é uma deslocação contínua do ser no tempo. Não se entenda este, no entanto, como ritmo de movimentos astronômicos, redutíveis a anos, dias etc.; isso não é senão a medida exterior do ritmo, convencional e cômoda. A substância do tempo é o transformismo fenomênico que, no mundo humano, é evolução da vida e do espírito. Percebo que deve soar estranhamente a expressão desta minha psicologia interior, neste nosso mundo hodierno, todo projetado para o exterior, em que as criaturas tendem a olhar para as outras e não para si mesmas. Hoje, esse meu tempo está cumprido. Aqueles escritos se espalharam pelo mundo.

Naquela noite de agosto, eu me encontrava só. Distante, a família vozeava, em torno da mesa de jantar. Minha filha me chamava, do terraço: “Papai, vem brincar!” Mais longe ainda, o imenso silêncio do campo adormecido. O mundo não via e não compreendia. Eu estava só.

A ideia tem seu ritmo de divulgação, deve vencer obstáculos psicológicos e práticos, canalizar-se pelos caminhos da imprensa, superar como força a inércia psíquica do ambiente, enxertar-se nas correntes espirituais do mundo. Uma vez, porém, desfechada a centelha do pensamento, a ideia é uma força lançada e, como o som e a luz, caminhará sozinha, tendendo a difundir-se na proporção da potência do centro genético, a multiplicar-se por ressonâncias infinitas no coração dos homens. A lei de todas as coisas marca o ritmo também deste fenômeno, que deve ter o seu tempo.

Estava sozinho, naquela noite, em face do fato consumado, da obra7 a que me havia dado totalmente, a que havia dado meu eu maior, qual sou na eternidade. Tremia diante de uma visão imensa, completa finalmente agora, diante de um pensamento titânico que me havia redemoinhado durante quatro anos, numa tempestade sobre-humana, não percebida exteriormente. Exultava, na satisfação perfeita de um profundo instinto biológico, preparado em minha eterna evolução, instinto inconsciente e absoluto como o de uma boa mãe que dá a vida a seu filho. Sentia haver tocado, finalmente, um vértice de minhas ascensões, sentia haver obedecido e triunfado ao mesmo tempo, cumprindo minha missão e função de cidadão do universo, inclinando-me ao comando da grande Lei de Deus. A flor, fecundada por uma vida de sofrimentos, havia nascido: eu não vivera, portanto, e não sofrera tanto, em vão. Minha vida, tão difícil, havia dado um fruto que a valorizava, minha paixão incompreendida pudera explodir-se na criação de uma obra de bem. Ao meu coração, que havia suplicado simpatia e compreensão e a que o mundo não quisera responder, respondeu uma Voz do infinito. Essa Voz me tomou pela mão, guiando-me pelos caminhos do mistério, ajudando-me a ascender a novas fases de consciência. Deu-me a visão deslumbrante da Divindade. Inebriou-me com o cântico das grandes leis da vida. Fez-me sentir o princípio das coisas. Maravilhou-me com a sensação do choque das forças cósmicas. Aniquilou minha natureza humana e me fez renascer numa natureza superior, numa vida mais alta, em que eu chorava, cantava e amava, em harmonia com todas as criaturas irmãs.

Despertei de um sonho maravilhoso, potente e dulcíssimo, de um êxtase profundo cuja recordação não se apaga, para descer novamente à triste realidade humana. Minha visão seria, mais tarde, compreendida e sentida por outros. Mas, eu a vivera primeiramente, na forma do contato mais imediato, por sensação direta, sem leitura e sem palavras, sozinho, com aquela Voz, disperso numa magnificência única de beleza, sob um poder esmagante de conceito, num ímpeto arrastador de paixão, arrebatado a um grau supremo de sublimação de todo o meu ser. Eu havia vivido todo aquele escrito, como concepção e como drama, como sensação e como paixão. Cada palavra, cada pensamento havia transformado uma gota de meu sangue, havia arrancado um pedaço de minha alma. Naquela noite, olhava para mim mesmo, estupefato, corpo examine, mas revigorado de eterna mocidade no espírito. Exultante e prostrado, olhava aquele livro, saído de minha pena, não sei de que resplandecente fonte, através de minha alma extasiada, aquele livro escrito sem premeditação e sem preparação, tão estranhamente desejado pelo destino. E perguntava a mim mesmo se ainda estava sonhando ou estava louco, a mim mesmo perguntava que significavam essas coisas maravilhosas para minha vida e para a vida do mundo. Olhava a obra concluída, à qual fora loucamente lançado por um impulso mais forte do que eu, e que havia levado a termo sem saber e sem desejar, porque um centro, diverso da minha consciência normal, sabia e desejava por mim.

Naquela noite, eu senti, transfuso em mim, o poder de quem comprimiu o universo num monismo absoluto, de quem encontrou o caminho das causas no dédalo dos efeitos. A Esfinge que mata quem revela o mistério me haveria aniquilado? Não. Eu havia obedecido e por mim velava a suprema autoridade da Lei. Eu não havia violado, mas respondido; havia secundado, sem rebeldia, o equilíbrio novo dos tempos maduros. Naquela noite, a cabeça em chamas, achava-me no paroxismo da minha festa de espírito.

O meu ser estava todo imerso numa onda de pensamentos, ressoante de vibrações, que por tanto tempo me haviam alimentado.

A vida continuava a mesma, supremamente indiferente, em torno de mim, no seu curso milenário, obedecendo à sua eterna lei.

Cantavam os grilos pelos campos, dormiam as plantas e as estrelas cintilavam. Pelo espaço, os mesmos silêncios das antigas noites egípcias, no coração dos homens as mesmas paixões pré-históricas. No entanto, algo de extraordinário acontecera: em minha alma, a eterna evolução rejubilava-se pela maturação de uma sua fase mais alta. E dos longes do universo eu percebia ressonâncias, em resposta a esse secreto júbilo. Júbilo de meu ser, que mais se avizinhava da Lei de Deus, júbilo da Lei de Deus, que se tornara mais real em mim.

Passou o tempo. Tranquilizou-se, depois, minha alma e tornei a descer do meu paraíso ao inferno da psicologia humana corrente. Aquele estado de hipertensão psíquica serenou e voltei a ser o homem comum e normal que se movimenta na vida, ensinando na escola, onde a normalidade psíquica e nervosa é posta seriamente à prova, cada dia. Sei muitíssimo bem o que é essa normalidade que a ciência quer negar aos hipersensitivos da minha espécie e sei bem usá-la, em minha defesa, onde esta me é imposta. Simplicíssimo! Basta descer biologicamente aos instintos primordiais, reduzir-se psíquica e espiritualmente, manifestando-se nas formas menos evolvidas de vida física e passional e a criatura se torna normal, compreendida e admitida entre os semelhantes.

Estou escrevendo à distância de um ano daquela noite de máxima tensão e do mais intenso êxtase. Quero retornar ao fenômeno com a mente fria do positivismo científico, com a psicologia demolidora da dúvida, com a inteligência normal e objetiva da maioria dos leitores. Volto normal: quero usar a forma mental dos meus semelhantes. Regresso ao fenômeno com a desconfiança de que, parece, a ciência deve estar sempre armada para sua garantia e seriedade. Desconfiança de mim mesmo, natural, agora em que me movo no mundo sensório e ilusório da normalidade, agora, quando raciocino e controlo; mas, absurda quando navegava seguro nos braços da inspiração. E vou ser normal, isto é, duvidoso e incerto, avançando às apalpadelas, por hipóteses, enquanto puder; porque, a um dado momento, se quisermos resolver este problema das noúres, terei que abandonar estes métodos de cegos e surdos, para lançar-me ao coração do problema com o método intuitivo. Estou colocando minha alma – novo holocausto de mim mesmo – na mesa anatômica da ciência, para que o bisturi desapiedado da observação lhe sonde o interior, não importa quais sejam as conclusões. Depois, e melhor do que eu, outros se darão ao esforço da análise e tomarão a responsabilidade de um juízo.

Considero, porém, após a compilação dos escritos8, dever meu este de narrar, de descrever o que senti e vivi, sinceramente, ainda que me enganasse; mas, eu mesmo é que devo fazê-lo, embora este novo esforço meu possa parecer objetivar outros fins, porque só eu posso saber e dizer com exatidão muitas coisas que os outros não poderão jamais deduzir senão através de minhas declarações.

O leitor, porém, compreende o absurdo de qualquer mentira para atingir mesquinhos objetivos humanos, porquanto minhas palavras revelam à evidência, em que mundo distante do humano eu me agito; o leitor compreende como a sinceridade é necessária em meu trabalho e como seria absurdo usar o infinito, em que eu tenho vivido, a serviço do finito, dos pequenos propósitos humanos.

Por isso, não tem sentido este novo escrito senão como um novo dever. Proponho-me, pois, fornecer os dados, o mais possível objetivos, para o estudo do fenômeno deste meu particular tipo de mediunidade e particular sistema de conceber e escrever, o que será, pelo menos, um exemplo interessante para os anais biopsíquicos. A obra aí está, como fato concreto, analisável como construção de pensamento e produto do fenômeno.

Aquém, no entanto, desse resultado, processou-se toda uma transformação e maturação de minha personalidade, e existe um imenso mundo meu, cuja descrição é necessária, para esclarecer a origem e fazer compreender a íntima natureza do escrito, não acessível, certamente, à primeira vista; e tanto mais que, de um modo geral, ele será acareado justamente com a psicologia chamada normal, que está muitíssimo longe de possuir os meios de intuição necessários para penetrar a substância fenomênica ou descer a profundidades.

Será também esta a história de uma alma e o leitor vê-la-á agitar-se, palpitante de novas paixões; será espectador de um intenso drama espiritual em que se movem, vivas, as forças e os princípios das leis cósmicas.

Procurarei comunicar a “minha” sensação do fenômeno, fazendo sentir como vibraram em mim essas forças do espírito, que tão frequentemente escapam à percepção comum e que muitos negam porque não sabem senti-las.

Procurarei fazer viver esta nova vida muito maior que tenho vivido, este rapto dos sentidos que me tem dado a sensação do paraíso e que me permitiu, demoradamente, ausentar-me da pesada atmosfera terrestre. Existe também, em tudo isso, algo de supremamente fantástico e aventuroso, embora conduzido com seriedade científica.

Aqui está todo um ser que se movimenta, coração e inteligência, num espasmo de humanidade e super-humanidade, que não pode deixar de despertar ressonâncias noutras almas. E aqui são postos de frente os mais graves problemas da psique e do espírito, e dessa superdelicada ciência do futuro, em que se fala de on-das-pensamento, de ressonâncias intelectivas, de captação de correntes psíquicas, de atrações e simpatias entre os mais distantes centros vibratórios do universo.

Aqui, se defronta um novo método de pesquisa científica por intuição e uma nova técnica de pensamento, que circunda os problemas por espiras concêntricas, comprime-os em ângulos visuais progressivos, afronta-os por visões de concepção poliédrica, aproximando-se sempre, cada vez mais, de sua íntima estrutura até desnudá-los em sua essência.

Problemas científicos, profundos, do futuro, que eu antecipo e investigo para resolvê-los. Existe no fenômeno, complexidade, riqueza de aspectos e, simultaneamente, um frescor de verdade; e como é apresentado como realidade vivida, interessa não só ao cientista, mas também ao filósofo e ao artista. No momento das conclusões, eu saberei ascender, em minha psique de intuição, e com ela arrojar-me ao mistério, que não poderá resistir-me.

No fenômeno há também um lado místico e religioso, porque ele se realizou numa atmosfera de fé intensa e de graça espiritual; existe nele um amor todo dirigido para o Alto, como no misticismo, e que pode recordar (embora muito de longe e se me perdoe a recordação) o amor como São Francisco o sentiu no Alverne.

Para compreender-me seria necessário saber como vivo, como penso, como sofro, como amo.

É absurdo estudar os fenômenos abstratamente, separados da atmosfera em que nasceram e se desenvolveram. A realidade nos apresenta casos concretos, que para serem verdadeiros devem ser particulares. Se queremos tocar com a mão uma realidade, devemos deter- nos no particular. É, porém, no particular do meu caso que irei encontrar as leis gerais do fenômeno inspirativo, comuns a muitos outros casos que observarei ao lado do meu.

O mundo tem necessidade destas revelações íntimas. Pelo menos, a literatura se enriquecerá de algo verdadeiro, vivido, substancial e isso já é muito. O mundo precisa destas afirmações de espiritualidade, necessita de quem grite, em tempos de materialismo e egoísmo desenfreados, a grande palavra da alma; de quem dê, em tempos de apatia e indiferença, exemplo de fé vivida; de quem repita, em forma científica e moderna, as grandes verdades esquecidas. E esta é vida, vida de espírito, a mais potente, a mais intensa que se possa imaginar. E se, em lugar de usar os termos vagos das religiões, precisarmos os problemas da alma, analisando-a e anatomizando-a, o haver determinado em pormenores o aspecto de tais fenômenos não poderá senão reforçar os princípios, como atualmente a presença dos aparelhos radiofônicos não permitirá à maioria duvidar da existência das ondas hertzianas.

Aqui prossigo em minha luta pela afirmação do espírito, a única coisa que me tem parecido valorizar uma vida, luta que considero, doravante, como missão.

Luto para que estas realidades mais profundas sejam vistas, para que estas concepções, altamente benéficas individual e socialmente, desçam à vida de cada dia e lhe comuniquem aquela esperança, aquele sopro de fé, tão necessários, sobretudo nas penas do trabalho e da dor. Será este um romance de gênero novo, um drama superlativo em que se acossam as vicissitudes de minha alma.

Tenho vivido muito, intensissimamente, e ainda tenho muito para dizer. Criei o hábito de quem tem pressa, isto é, de dizer tudo do modo mais simples, mais breve, mais sincero.

Nestas páginas, nasceu em mim um fio de pensamento, que tomou uma direção e se desenvolve. Não sei aonde poderá chegar. Segui-lo-ei e convido o leitor a segui-lo comigo. E começo.